Como Fazer Cerveja Em Casa

Introdução

A cerveja é uma bebida milenar que tem seus primeiros registros de aproximadamente 6000 a.C. na mesopotâmia, onde atualmente hoje são estão partes dos territórios de Irã, Iraque, Kwait, Síria e Turquia. É a terceira bebida mais consumida no mundo, depois da água e do café.

Antiga gravura egípcia mostrando consumo de cerveja
Egípcios já consumiam cerveja há aproximadamente 6000 anos antes de Cristo

Inspirado pelo movimento homebrewer surgido na Califórnia nos anos 70 e 80 e o consequente boom do mercado americano de craftbeers, ganha força no Brasil os entusiastas do faça a sua própria cerveja. A partir do início dos anos 2000 uma série de confrarias e associações começam a surgir pelo país e um novo mercado de venda de equipamentos, matérias primas e insumos para esse segmento se consolida a cada ano.

Cerveja, o super-homem engarrafado

Vestígios arqueológicos muito antigos, que datam de 9000 a.C. demonstram que a cerveja é um dos produtos manufaturados mais antigos da humanidade. Por conta disso, muito tem se falado sobre como a cerveja serviu de motor para o desenvolvimentos de diversas áreas da ciência ao longo dos últimos séculos.

Um documentário de 2011 produzido pelo canal Discovery Channel entrevista uma série de estudiosos e cientistas contando das inúmeras vezes em que a cerveja "salvou a humanidade".

Resumo do processo

A cerveja é uma bebida obtida através da fermentação alcoólica de mosto de cereais maltados e água, por ação de leveduras cervejeiras e com adição de lúpulo, para conferir amargor característico. Esse mosto é fervido, resfriado e, então, inoculado com leveduras cervejeiras. Após o período de fermentação, a bebida é então maturada, clarificada e carbonatada, estando então apta ao envasamento.

Matéria prima

Existem uma série de alegações e "lendas urbanas" sobre o uso de diferentes matérias primas na produção de cerveja, algumas com alguma explicação lógica e outras fruto de distorções e interpretações ortodoxas de legislações. No entanto, podemos dizer que, tradicionalmente, cervejas são produzidas com 4 ingredientes básicos: água, malte, lúpulo e levedura.

Lei de Pureza (?) da Cerveja

Antes de a cevada se tornar o cereal cervejeiro por excelência, inúmeras outras fontes de amido eram normalmente utilizadas como ingrediente no fabrico de cervejas, como trigo, aveia, batata, entre outros.

No início do século XV na Baviera, afim de evitar uma competição de preço por trigo e centeio com as padarias, o Duque Guilherme IV publica a Lei de Pureza da Cerveja que regulava o uso de apenas 3 ingredientes para a produção de cerveja: água, cevada e lúpulo. Como na época da promulgação da lei ainda não havia sido elucidado o papel das leveduras na produção de cervejas, esse ingrediente só foi adicionado posteriormente ao texto.

Um outro fator de cunho religioso também foi importante no redação da normativa: impedir o uso de ervas que estavam ligadas a rituais de bruxaria ou pagãos. Além do lúpulo, outras inúmeras ervas também eram usadas no processo de produção de cervejas para conferir aromas, amargor e ajudar na conservação das bebidas. Plantas como belladona, artemísia, milefólio, junípero, hera, marrolho entre outras eram usadas em misturas também chamadas de gruit e muitas delas tinham ligações com rituais combatidos pela Inquisição.

A Reinheitsgebot, a conhecida Lei de Pureza da Cerveja, foi a primeira lei da história da humanidade que tratou de normatizar a produção de alimentos e teve um papel fundamental para padronizar o que conhecemos hoje por cerveja. No entanto, a normativa serviu também para criar mitos no imaginário dos consumidores, servindo de apelo publicitário vazio e mal interpretado.

Moagem

Inicialmente, os diferentes tipos de maltes que compõem a receita são pesados e moídos. A moagem expõe a parte interna do grão ao contato com a água cervejeira, facilitando a reação de quebra do amido em açúcares fermentescíveis. É interessante atentar para uma correta calibração do moinho, evitando uma moagem muito severa (alta formação de farinha) e ao mesmo tempo garantir que a maioria dos grãos seja quebrado, para não haver diminuição de rendimento.

Brassagem

Nessa etapa o malte moído é misturado a água cervejeira na panela de mostura e essa mistura é então mantida em temperaturas específicas para que ocorra o processo que chamamos de sacarificação ou mosturação. Esse processo ocorre quando as enzimas que estão naturalmente presentes nos grãos de malte se dispersam na água cervejeira e quebram as moléculas de amido (parte branca dos grãos que, devidamente moída, forma a farinha). Essa quebra das moléculas grandes de amido em moléculas menores forma o que chamamos de açúcares fermentescíveis, que é o que servirá de alimento para as leveduras cervejeiras na etapa de fermentação.

Rampas de temperatura sugeridas

Weiss, Witbier, cervejas com grande percentual de trigo na receita:
45ºC - 15 minutos • 55ºC - 15 minutos • 66ºC - 50 minutos • 76ºC - 5 minutos

Pilsen, IPA, APA, Pale Ale:
66ºC - 60 minutos • 76ºC - 5 minutos

Scottish Ale, Irish Ale, Bock:
69ºC - 60 minutos • 76ºC - 5 minutos

Após manter a mistura de água e grãos moídos pelo tempo e temperaturas indicadas na receita é então realizada a filtragem dessa mistura separando, da melhor forma possível, as partículas sólidas do líquido doce resultante, o qual passamos a chamar de mosto. Essa filtragem pode ser realizada com diferentes métodos (ver abaixo) a depender do tipo de panela escolhida pelo cervejeiro.

BIAB (Brew In A Bag) - método que utiliza um saco (bag) de tecido filtrante como voil, algodão, filó ou volta ao mundo, onde o malte é colocado dentro do saco e então é realizada uma infusão na água cervejeira.

Exemplo de um método de filtragem BIAB
Método de filtragem Brew In A Bag (BIAB)

Fundo Falso - processo que consiste em instalar um fundo falso perfurado no fundo da panela de brassagem funcionando como uma peneira. Uma válvula ou torneira instalada abaixo do fundo falso serve como saída do mosto filtrado.

Exemplo de um método de filtragem com fundo falso
Método de filtragem com fundo falso

Bazuca - método de filtragem que utiliza um filtro cilindrico instalado junto a flange da válvula de saída do mosto.

Exemplo de um método de filtragem com bazuca
Método de filtragem com bazuca

A transferência do mosto filtrado para a panela de fervura é realizada através de uma mangueira atóxica conectada na válvula instalada na parte inferior externa da panela de brassagem.

Fervura

Após a transferência, o mosto cervejeiro é então fervido durante aproximadamente 60 minutos. Esse procedimento tem algumas funções, mas as mais importantes são a coagulação de proteínas que causam turbidez no produto final e a esterelização do mosto, eliminando possíveis contaminantes do produto.

Após o fim da fervura é realizado um procedimento para concentração das impurezas, proteínas coaguladas e resíduos de lúpulo no fundo e no centro da panela, evitando que essas partículas sejam carregadas para o fermentador. Esse processo é chamado de whirlpool e consiste basicamente de formar um redemoinho no mosto por alguns minutos. Após alguns minutos essas partículas indesejadas, também chamadas de trub, decantam e já é possível perceber o mosto mais clarificado.

Exemplo de uma formação de trub através do procedimento de whirlpool
Formação de trub após produção de uma Porter

Durante essa etapa é também realizada a adição do lúpulo, ingrediente que confere amargor e aroma característico da cerveja. Existem dezenas de variedades de lúpulos e eles podem ser diferenciados por diversas características, a mais importante, no entanto é o índice de alfa ácidos analisados pela variedade. Variedade com até aproximadamente 7% de alfa ácidos chamamos de variedades de aroma, enquanto que as que apresentam acima de 7% de alfa ácidos são normalmente referidas como variedades de amargor.

Lúpulos de Aroma - Saaz • Hersbrucker • Fuggle • Tettnang • East Kent Golding • Tradition • Mittelfrüeh • Crystal • Fantasia • Lubliner • Mandarina Bavaria

Lúpulos de Duplo Propósito - Columbus • Citra • Enigma • Northern Brewer • El Dorado • Sorachi Ace • Topaz

Lúpulos de Amargor - Magnum • Cluster • Summit • Warrior • Zeus • Herkules • Admiral • Comet • Nugget • Pahto

Resfriamento

Após a etapa de fervura, o mosto deve ser transferido para os tanques de fermentação. No entanto, para que as leveduras possam sobreviver, a temperatura do mosto deve ser inferior a 22ºC. Dessa forma, depois da fervura é necessário resfriar o mosto cervejeiro antes da inoculação das leveduras. Esse processo pode ser realizado de algumas maneiras distintas, a depender do equipamento utilizado pelo cervejeiro.

Resfriador de imersão - esse equipamento nada mais é do que uma serpentina de inox, alumínio ou cobre que é mergulhada no mosto após o fim da fervura e dentro dela é circulado um líquido que vá realizar a troca de temperatura com o mosto, geralmente esse líquido é água da rede pública. De baixo custo e fácil utilização, é a melhor opção para iniciantes e equipamentos compactos.

Resfriador de mosto cervejeiro de imersão
Resfriador de mosto cervejeiro por imersão

Resfriador de contra fluxo - esse sistema também tem o formato de serpentina, mas diferentemente do resfriador de imersão, ele não é imergido no mosto a ser resfriado. O mosto é bombeado para dentro de uma serpentina que é envolta por outra mangueira de maior calibre por onde passa o liquido refrigerante (água da rede pública). O equipamento tem custo mais elevado, necessita que o mosto seja bombeado para dentro do sistema e é preciso manter uma rotina de limpeza cuidadosa após o uso, mas possui boa efetividade no processo.

Resfriador de mosto cervejeiro por método de contra fluxo
Resfriador de mosto cervejeiro por contra fluxo

Resfriador de placas - equipamento que também exige que o mosto seja bombeado para dentro do sistema. O equipamento é fechado e consiste de uma série de placas que criam câmaras muito finas por onde passam, alternadamente, mosto cervejeiro e o líquido refrigerante, no entanto sem se misturarem. Essas câmaras possuem uma grande área de contato com as placas adjacentes o que garante uma alta efetividade na troca de temperatura. No entanto, por formar caminhos muito estreitos, a entrada de particulas orgânicas sólidas (proteinas de alto peso molecular, fragmentos de lúpulo e outras impurezas) pode reduzir o fluxo do mosto ou mesmo entupir o sistema. É necessário manter uma rotina de limpeza muito cuidadosa pois pode se tornar um possível ponto de contaminação.

Sistema com um resfriador de placas acima e uma bomba de transferência de mosto abaixo
Sistema de resfriador de placas (acima) ligado a uma bomba de transferência (abaixo)

Inoculação

Com o mosto devidamente resfriado e transferido para o tanque procede-se então com a inoculação das leveduras cervejeiras. A cepa de levedura a ser utilizada deve ser escolhida de acordo com o perfil sensorial pretendido na cerveja produzida.

As leveduras cervejeiras são comercializadas de duas formas: líquida ou liofilizada (seca em formato de pó), sendo essa última apresentação a forma mais usual para produções caseiras. Esses fermentos são vendidos em envelopes onde consta as formas de utilização, mas geralmente o conteúdo de um envelope é adequado para fermentar até 20 litros de cerveja.

É importante que a inoculação seja feita respeitando os procedimentos e quantidades descritas pelo fabricante e seguindo as rotinas de limpeza e sanitização.

Envelope de levedura cervejeira
Envelope de levedura US-05 do fabricante Fermentis
Leveduras sugeridas para diferentes tipos de cervejas

US-05 (Fermentis) - Pale Ale, IPAs, APAs, Red Ale, Stout, Porter, cervejas americanas e inglesas de corpo baixo a médio com características sensorias de fermentação neutra

WB-06 (Fermentis) - Weiss, cervejas turvas de trigo que apresentem perfil sensorial aromático e fenólico

W34/70 (Fermentis) - Pilsen, Vienna Lager, Bohemian Pilsner, Oktoberfest, cervejas de fermentação lager com perfil levemente aromático

T-58 (Fermentis) - Blonde Ale, Belgian Pale Ale, Witbier, cervejas com perfil sensorial típico de estilos belgas

Fermentação

É nessa etapa que as leveduras vão metabolizar os açúcares fermentescíveis obtidos durante a brassagem transformando-os em CO2, álcool e compostos de aroma. O mosto vai fermentar por aproximadamente 10 dias em tanques fechados e com baixíssima intervenção humana durante essa etapa. O principal cuidado durante a fermentação é manter o mosto na temperatura adequada para a cerveja que está sendo produzida. Para isso é importante que o fermentador esteja dentro de um ambiente com controle de temperatura como uma geladeira com um termostato eletrônico.

Geladeira adaptada para a fermentação de cerveja caseira
Geladeira adaptada para fermentação de cerveja artesanal

Para acompanhar o andamento da fermentação e determinar o seu fim, é importante fazer leituras de extrato aparente com uso de um hidrômetro de coluna, também conhecido como densímetro. Esse aparelho mede a concentração de açúcares no mosto, que vai diminuindo ao longo do tempo de fermentação. Após serem realizadas 2 leituras iguais com intervalo de 24 horas entre elas é possível determinar o fim da fermentação.

Maturação

Essa etapa acontece também dentro dos tanques após a determinação do fim da fermentação. Apesar de também não haver grande interferência humana nessa etapa, a maturação é muito importante para que algumas reações metabólicas que consomem compostos que podem conferir sabores e aromas indesejados ocorram. Essa etapa pode levar de 5 a 7 dias e a sua determinação é através de provas sensoriais.

Clarificação

Ao fim do período de maturação reduz-se a temperatura o mais próximo possível de 0ºC. Essa temperatura favorece a floculação das leveduras que estão em suspensão no mosto auxiliando na clarificação da bebida.

Carbonatação e Envase

A carbonatação é a etapa onde a bebida vai absorver gás carbônico (CO2) e formar a característica espuma da cerveja ao servir. Essa etapa, em produções caseiras, é feito através da técnica de refermentação na garrafa. O procedimento consiste em separar a cerveja da biomassa de levedura que se depositou no fundo do tanque e nesse outro recipiente acrescentar uma pequena porção de algum açúcar fermentescível, o qual chamamos de primming. Essa mistura é então envasada e a garrafa é armazenada em temperatura ambiente, favorecendo o reinício do processo fermentativo. Esse gás carbônico produzido na refermentação fica preso na garrafa criando uma pressão interna que força a absorção do gás pelo líquido. Para ajudar nessa absorção, após um período de 14 dias, a cerveja deve ser acondicionada a baixas temperaturas.

O primming é preparado fazendo uma mistura de água esterelizada ou a própria cerveja que vamos envasar com açúcar refinado. A dosagem referência de açúcar é de 6 a 9 gramas de açúcar por litro de cerveja a ser envasada.